quinta-feira, 7 de agosto de 2008

O estatuto do herói – Litport II

Algumas palavras a mais sobre nossa discussão de hoje, em torno do estatuto do herói, e seu lugar entre a épica e o romance burguês.


Primeiro, vou insistir na diferença não só formal quanto epocal da épica e do romance.

Uma é tradicionalmente um “canto” em verso, mas um canto narrativo. O outro é uma construção prosaica e está livre de certa “cantoria”, ou seja, de certa ordenação musical e, portanto, métrica, e portanto, formal. Assim, o romance é mais flexível e frouxo formalmente, podendo admitir mesmo uma heterogeneidade formal, enquanto a épica é mais regular, mais uniforme. Pensemos na Divina Comédia do Dante: 3 grandes partes (Inferno, Purgatório e Paraíso) no esquema de terza rima, enquanto a Viagens na minha terra, do Garrett é uma prosa irregular, que admite pequenas tramas, macro-narrativas, descrições, dissertações sobre temas vários, epístolas, pequeninos “causos”, memorialismos, versos, dentre outras formas textuais.

Mas a diferença epocal, no decurso do tempo, é incontornável. A épica é conhecida por ser o “gênero” que primeiro se manifesta no legado cultural de um povo, e há muitos estudos que mostram o quanto os demais “gêneros” são desenvolvimentos ou derivações da épica em contato com outros modos de vida e de sensibilidade daquele povo. Não temos notícia de que os textos mais remotos de uma civilização antiga seja em forma de teatro, ou de romance, por exemplo. Salvo futuras descobertas arqueológicas, é o canto heróico de um povo o que primeiro desponta numa cultura. O romance, nesses termos, tem uma raiz na épica, sim, mas totalmente contaminado por uma série de modificações sociológicas, políticas, espirituais, que afetam a perspectiva de mundo coletiva e a relação individual dos homens com suas inquietações filosóficas antigas, até mesmo míticas.

Podemos dizer, portanto, que o romance é, em alguma medida, uma atualização do “modelo” épico aos padrões das sociedades modernas, marcadas pela “descentralização” do herói épico, que deixa de representar um povo inteiro e passa a representar apenas o centro de uma “pequena trama” (a da sua vida ou da vida daqueles que o envolvem) no meio de milhares de tramas outras, possíveis e diferentes e desconhecidas, dentro de toda uma coletividade cultural que já não é uniforme, mas heterogênea, e nem pode ser assimilada, pois, através de um único “tipo humano”. Assim, cada indivíduo é, nas sociedades burguesas modernas, o centro e o herói de uma história que é a sua vida particular, privada e pública ao mesmo tempo, mas nunca coletiva.

É claro que, ao dar visibilidade individual e centralidade narrativa a um personagem singular, o romance faz dele um herói que, ao contrário da épica, não é necessariamente “heróico” no sentido tradicional, ou seja, ele não é sempre exemplar no sentido positivo do termo. Ele pode ser exemplar no sentido negativo, como se o romance nos desse não um modelo, mas um desvio do modelo. Rigorosamente, todos os individuos se desviam mais ou menos dos modelos sociais.

Podemos dizer que, enquanto na épica os personagens são construídos a partir de sua fixação no eixo modelar, valorizando o que eles têm de mais coletivo e geral, no romance os personagens são construídos a partir de sua deriva, de seu desvio para longe desse eixo modelar, para fora desse padrão coletivo, sendo neles valorizado o que eles têm de mais específico e atípico e diferencial em relação à maioria, ou à média dos homens de sua cultura.

Por isso, acho que é pertinente considerarmos que há sim uma intenção na construção dos personagens, e essa intenção se modifica no tempo, porque no tempo se modificam as sensibilidades e as perspectivas que se têm do homem e do mundo (lembro de Camões: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades). Podemos dizer que na épica o alvo, a intenção, é atingir o centro, e no romance, a periferia.

Outro ponto que me parece importante é o do modelo. O centro como modelo é praticamente auto-evidente, auto-explicável. Mas quando damos visibilidade à periferia, tiramos um pouco da luz que se projeta no centro. De alguma forma, o romance, ao trabalhar com figuras, pontos de vista e caracteres que escapam dos padrões centrais, acaba abalando o próprio valor de “modelo” que se colocou no centro das atenções da tradição cultural, propondo sua fragmentação em diversos outros pequenos modelos não centrais, não totalitários, não unitários, não homogêneos, enfim: não épicos.

E aqui entra a Crítica como um fundamento do “gênero” romance: abalar a unidade e a autoridade do modelo é um exercício justamente de criticar esse modelo, essa centralidade uniforme onde, a rigor, numa sociedade moderna, nenhum indivíduo fica bem encaixado, pois todos têm particularidades insuspeitáveis que nem o céu e a terra desconfiam. E coube, felizmente, aos artistas desvendar e nos revelar essas particularidades que reforçam ou fragilizam a generalidade do modelo humano, e isso é feito, em arte, através da imaginação e do jogo com as verdades humanas que a sensibilidade dos autores acessa.

Bem, essa é uma excelente via de acesso ao entendimento dos romances e contos que vamos trabalhar adiante. Na medida em que as obras nos mostrarem seu jogo de construção do “mundo” e do “homem” oitocentista, poderemos ajustar e desviar nossas discussão para aspectos mais concretos de figuração de heróis, modelos, tramas etc. checando mesmo se estas noções, preliminares, fazem sentido ou se não, e onde é preciso criticá-las com base nas obras. De qualquer forma, a vivacidade deste debate já nos serve de horizonte para sentirmos como é problemático encaixarmos o homem dos contos e dos romances numa bitola estreita, domesticando-o num entendimento frio e calculista em que, afinal, ninguém, real ou ficcional, se encaixa.

Falta desenvolver aqui uma reflexão sobre a moral do herói (e do autor, e da obra que os encorpa) nisso tudo. A moral também é passível de se configurar como modelo, e nesse ponto ela é mais um componente na construção do homem e do mundo. Um componente forte, pois a moral pode servir de instrumento de regulação de vários outros componentes da alma e do discurso. Nessa medida, creio que seja interessante pensar a moral como o próprio “operador” das transformações do perfil do herói ao longo do tempo, através dos gêneros.

E a História enquanto discurso? Bem, a História é uma das bases de reflexão para os romances do nosso curso. Julgo que, inicialmente, podemos aproveitar, por enquanto, o que é dito no final do verbete do Abbagnano que o Jun me enviou há pouco sobre o herói. O verbete, como um todo, nos serve de fonte e baliza para mais “pano pra manga” desse debate. Infelizmente, percebi que o verbete não se refere ao aspecto modelar que pode assumir o herói, nem ao registro pedagógico que, como bem lembrou o Bruno, está no bojo de toda arte, e especialmente no canto épico e nos romances. Considero essa uma falta importante no texto, mas só é importante mesmo porque estamos discutindo literatura em sala, e há pontos muito mais sutis do que um verbete de filosofia talvez se proponha a dar conta amplamente.

Reproduzo, então, para fechar o post, o verbete que o Jun mandou:

HERÓI (lat. Heros; in. Hera, fr. Héros; ai. Heros-, it. Eroé). Segundo Platão, os H. são semideuses nascidos de um deus que se apaixonou por uma mulher mortal ou de um homem mortal que se apaixonou por uma deusa (Crat., 398c). Obviamente, com essa definição Platão relegava a noção de H. à esfera do mito, assim como pertence ao mito a "idade dos H." de que falavam Hesíodo e o próprio Platão (v. IDADE); com isso, expungia essa noção, pelo menos implicitamente, do campo da filosofia. Aristóteles admitia essa expunção, quando observava: "Se houvesse duas categorias de homens tais que a primeira diferisse da segunda tanto quanto se julgava que os deuses e os heróis diferiam dos homens, sobretudo pela valentia física e pelas qualidades da alma, então sem dúvida ficaria evidente a superioridade dos governantes sobre os governados, etc." (Poi, VII, 14, 1332b 17). Foi só com o Romantismo que se começou a acreditar na existência de indivíduos excepcionais, nos quais se encarna a Providência Histórica e que, portanto, estão destinados a cumprir tarefas predominantes. Hegel vê nos heróis, ou "indivíduos da história do mundo", os instrumentos das mais altas realizações da história. São videntes; sabem qual é a verdade do seu mundo e do seu tempo, qual é o conceito, o universal próximo a surgir; os outros reúnem-se em torno da bandeira deles, porque eles exprimem aquilo cuja hora é chegada. Aparentemente, tais indivíduos (Alexandre, César, Napoleão) nada mais fazem que seguir sua própria paixão, sua própria ambição; mas, segundo Hegel, trata-se de astúcia da Razão-, esta utiliza os indivíduos e suas paixões como meios para realizar seus próprios fins. O indivíduo, em certo ponto, perece ou é levado à ruína pelo sucesso: a Idéia Universal, que provocara esse sucesso, já alcançou seu fim (Phil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 83). Nos heróis, age a mesma necessidade da história, e por isso resistir a eles é inútil. "Eles são levados irresistivelmente a cumprir sua obra" (Ibid., p. 77). Em conceito análogo inspirava-se T. Carlyle em sua obra Os heróis e o culto dos heróis e o heróico na história (1841): "A história universal, a história daquilo que o homem realizou neste mundo, substancialmente outra coisa não é senão a história dos grandes homens que aqui agiram. Foram estes grandes homens os líderes da humanidade, os inspiradores, os campeões, e, lato sensu, os artífices de tudo aquilo que a multidão coletiva dos homens cumpriu e conseguiu" (Heroes, liç. 1). Esse "culto dos Heróis", como Carlyle denominava, tem dois pressupostos: 1o. o caráter providencial da história, que, segundo se crê, destina-se a realizar um plano perfeito e infalível em cada uma de suas partes; 2o. o privilégio, concedido a alguns homens, de serem os principais instrumentos da realização desse plano. Estas duas crenças constituem as características da concepção romântica da história; subsistem e caducam com ela (v. HISTÓRIA)


ABBAGNANO, Niloca. Dicionário de Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 2002.

3 comentários:

Anônimo disse...

Escelente post, professor. O primeiro parágrafo já é elucidador, como eu havia comentado um pouco em sala, com palavras mais pobres..rs..

Navego pelo site e confesso que gosto!

Até breve,

Abraço

Élvio

Sebastião Edson Macedo disse...

Obrigado por sua leitura e comentário, Élvio. Na verdade, o parágrafo que se refere à moral é inspirado na sua contribuição, ao lembrar o que Nietzsche pensa sobre a moral particular do artista e a moral normativa das instituições sociopolíticas. Só posso agradecer pela sua instigação.

E que bom que vc gosta do blog. Ajude-me a mantê-lo ao gosto, sim?

Um abraço.
S.

Sebastião Edson Macedo disse...

Meus Caros Alunos,

A Bianka me enviou, por e-mail, o seguinte comentário:

***
Sebastião, discordo de você quando afirma ser a moral "um componente de construção do homem e do mundo". Pois, percebo em primeiro lugar não a moral como possibilitadora de homem e mundo, mas sim a ética. Tanto na épica quanto nos grandes romances. Outro ponto que considero importante para a discussão diz respeito às peculiaridades inerentes ao sagrado e ao profano enquanto possibilidade de experienciação do, no e com a realidade do real. Acredito que aqui, sem atribuições conceituais limitadoras do pensar, podemos então compreender melhor a configuração dos diferentes tipos humanos ofertados pelo literário.
Grande beijo, Bianka.
***

Eu respondi a ela por e-mail, mas como a discussão interessa a todos, combinei com ela de postar aqui no blog meu comentário à sua mensagem, que foi o seguinte:

***
Bianka,
obrigado por sua reflexão.
Na verdade, você não está exatamente discordando de mim, mas me ajudando a tornar mais específica uma noção de homem e mundo que aqui nos interessou. Vou tentar demonstrar por quê:

Repare, antes de tudo, que quando me refiro a "um componente" de "construção", não estou a dizer que homem e mundo se constróem apenas ou privilegiadamente por este componente, no caso, a moral. Portanto, não estou excluindo a ética em meu enunciado.

O verbo "possibilitar", e a substantivação "possibilitador", a meu ver, se aplica, sem dúvida, à ética, mas me pergunto se enquanto agente direto no homem e n mundo, ou se, antes, no "pensamento" do homem e do mundo, ou seja, na sua construção ontológica.

Isso, porque o verbo remete não só ao que é possível (ou impossível), mas rigorosamente à idéia de "potência", e o potencial de cada coisa (do "ser", se você quiser) é bem diferente do discurso que serve de mediador entre nós e as coisas, isto é, que serve de "logos", ou pensamento, ou construção.

Seja como for, é inegável que podemos nos deparar com um mundo e um homem sem nenhuma ética. É, em termos de construção no real, possível. Pense nas sociedades primitivas, pense na guerra da Geórgia: a ausência de éthos não anula a existência humana e o real do mundo, assim como o declínio ou a ascenção da moral.

Afinal, o bárbaro, aquele que parece não ter nenhuma ética, não nos enganemos a esse respeito, ainda é, ontologicamente falando, um homem. E a barbárie nos rodeia há séculos sem o mundo deixar de ser menos mundo.

Portanto, moral, ética, política, arte, mística (que é onde entra o seu bem lembrado ponto do sagrado/profano), dentre outros, são, cada um à sua medida no decurso do tempo histórico e das sensibilidades, constructos que, por sua vez, enquanto tal, se combinam e constróem o homem o mundo.

Para cada cultura há uma primazia dentre esses componentes. No caso, você está valorizando a ética para o pensamento sobre essa construção, mas há quem prime pela arte (talvez como nós, estudantes de literatura?), há quem prime pela política (no caso das regulações autoritárias via o poder/força pública), há quem prime pela mística (como muitos devotos que não conhecem outra lei que não a espiritual...).

Eu gosto de pensar da seguinte forma:

a moral, por mais que possa ser normativa/normatizada, é uma "possibilidade" de regulação de uma vida pessoal;

e a ética, do outro lado desses termos, por mais que possa ser individual/individualizada, é um "regulador" da possibilidade de uma vida pública.

Se, como você escreveu, "percebo em primeiro lugar não a moral como possibilitadora de homem e mundo, mas sim a ética", sou levado a entender que você, segundo o meu ponto de vista humanístico, prefere entender e colocar a vida pública antes da vida pessoal, ou, dizendo de uma outra forma, você "suspende" a vida pessoal para dar lugar, prioritariamente, à vida pública, destacando-a em detrimento da experiência singular que se pode e se costuma ter (sagrada ou profana, como você mesmo apontou) do próprio real.

É um modo de estar no mundo, sendo-o. Interessante. Talvez este seja o seu dasein. Mas repare: é um dasein construído no jogo incontornável entre seus conceitos de moral e ética.

Creio que o mais importante, nos romances que vamos trabalhar, e nisso vou precisar de sua ajuda, é pensar que jogo ético-moral possibilitou a estabeleceu o perfil dos personagens e dos ambientes ficcionais que estaremos lendo. E quais outros componentes colaboram na construção desses caracteres.

Excelente provocação.

Um abraço e bom fim de semana.
S.
***

É isso. Peço que não se sintam tímidos em fazer seus comentários aqui mesmo no blog, pois assim todos podem ter acesso a eles. Afinal, isto é para um debate, não para uma conclusão definitiva sobre os assuntos, certo?

Abraços a todos.